sábado, 13 de abril de 2013

Nós, os terráqueos.


“Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansado, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida.” 

Clarice Lispector em "Laços de Família"

sábado, 6 de abril de 2013

A ambiguidade da paixão


"Estranho, sim. As pessoas ficam desconfiadas, ambíguas diante dos apaixonados. Aproximam-se deles, dizem coisas amáveis, mas guardam certa distância, não invadem o casulo imantado que envolve os amantes e que pode explodir como um terreno minado, muita cautela ao pisar nesse terreno. Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentes e o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça. Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, ao mesmo tempo os protege como uma armadura. Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem."

Lygia Fagundes Telles em "A Disciplina do Amor"

quinta-feira, 21 de março de 2013

De Dentro do DOI-CODI (II)


"Vladimir estava lá, sentado numa cadeira, com o capuz enfiado e já de macacão. Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que tirássemos os capuzes, por isso nós vimos que era Vladimir e vimos também o interrogador, que era um homem de 33 a 35 anos, com mais ou menos 1,75 metro de altura, uns 65 quilos, magro mas musculoso, cabelo castanho-claro, olhos castanhos apertados e uma tatuagem de âncora na parte interna do antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço. Ele nos pediu que disséssemos ao Vladimir ‘que não adiantava sonegar informações’. Tanto eu como Duque Estrada de fato aconselhamos Vladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as informações que os interrogadores desejavam ver confirmadas já tinham sido dadas por pessoas presas antes de nós. Vladimir disse que não sabia de nada e nós dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de madeira onde nos encontrávamos na sala contígua. De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e depois de Vladimir, e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a ‘pimentinha’ e solicitou a ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio e os gritos de Vladimir confundiam-se com o som do rádio. Lembro-me bem que durante essa fase o rádio dava a notícia de que Franco havia recebido a extrema-unção, e o fato me ficou gravado, pois naquele momento Vladimir estava sendo torturado e gritava. A partir de um determinado momento, o som da voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais tarde, os ruídos cessaram."*

MARKUN, Paulo. Meu Querido Vlado - A história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

* Neste trecho, a voz é do jornalista Rodolfo Konder e não de Markun.


Célebre foto de Herzog: "suicidado"
35anos depois,JUSTIÇA!Causa da morte:lesões e maus tratos

quarta-feira, 20 de março de 2013

De dentro do DOI-CODI (I)


"Entrei numa sala onde me obrigaram a tirar a roupa. Da sala ao lado, eu ouvia os gritos dos torturadores e a voz de Dilea respondendo. Percebi que minha mulher começava a ser torturada. Em seguida, ficou mais difícil imaginar o que acontecia com ela, pois passei a levar choques elétricos por todo o corpo, inclusive no pênis.

Além da dor intensa e aguda, o pior era não saber quando e de onde viria a próxima descarga, porque eu continuava com a cabeça coberta pelo capuz. O sujeito que me recebera quando estávamos no banco de madeira estava na sala, mas havia outros.

Até então, eu imaginava que o interrogatório seria como o que vira em filmes, quando o preso tem de responder mil vezes à mesma pergunta. Só que não havia perguntas – apenas um bordão:

- Fala, filho-da-puta!

Cada vez que eu perguntava o que eles queriam saber, nova descarga elétrica. Afinal, me rendi. Não resisti como Henry Alleg ou como tantos militares que morreram sem dizer uma palavra. Não cheguei ao limite da resistência física, como os que sofreram dias, semanas, meses antes de ceder. Nem sequer tive de enfrentar o jogo terrível de ganhar tempo inventando histórias falsas, para permitir que outros militares tivessem tempo de escapar. Meu limite estava na sala ao lado. Tinha 1m60, uma filha de seis meses, cabelos louros e olhos azuis.

Entre um choque e outro, escutando os gritos de Dilea, falei o nome dos cinco companheiros da base dos jornalistas a que eu pertencia. Também entreguei a base em que militara na faculdade – mas, naquele momento, tentei preservar Vlado e os jornalistas mais velhos, com quem me relacionara recentemente. Não sei precisar quanto tempo isso durou, mas finalmente fui levado para uma cela.

Algum tempo mais tarde, o carcereiro apareceu diante da grade, com um capuz na mão, e lá fui eu para novo interrogatório. Sem saber com quem falava, logo percebi que meu interrogador sabia quanto se arrecadava mensalmente entre os jornalistas e o valor das contribuições individuais. Me rendi à aritmética e dei o nome de outros seis militantes, entre eles, o de Vladimir Herzog."

MARKUN, Paulo. Meu Querido Vlado - A história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

sexta-feira, 15 de março de 2013

15 anos sem Tim

"No dia 8 de março de 1998, o Rio de Janeiro amanheceu nublado, cinzento e chuvoso. Depois de ensaiar a semana inteira com a banda no Recreio, Tim chegou a Niterói às cinco da tarde, nervoso e ofegante. No camarim, reunido com os músicos antes do show, pela primeira vez, não fumou nem ofereceu um baurete, só bebeu água.

Com o teatro lotado e meia hora de atraso, às 20h30, a Vitória Régia atacou a introdução de 'W Brasil' e chamou o síndico, diversas vezes, com o público aplaudindo. Mas Tim só entrou cinco minutos depois, trôpego e cambaleante, lívido e com os olhos esgazeados. Não conseguiu sequer reclamar do som ou gritar 'Vitória Régia!' quando a banda começou a tocar 'Não quero dinheiro':


'Vou pedir... vou pedir..', tentou cantar.

E saiu do palco. O público vaiou. Cláudio Mazza foi ao microfone e avisou que Tim não estava passando bem, que voltaria em 15 minutos. O público vaiou mais forte.

Na platéia, sua irmã Luzia viu que Tim estava mesmo mal, muito mal, e teve vontade de matar uma mulher na fila da frente, que comentou alto:

'Passando mal... ele deve é ter cheirado todas. Devia enfiar porrada na cara dele, que ele ia fazer o show no peito e na raça.'

Mazza voltou ao microfone nervoso e pediu um médico na platéia. Um doutor e uma doutora correram para o camarim. Tim havia sofrido uma crise de hipertensão, uma embolia pulmonar e uma parada cardiorrespiratória, revertida com massagens e medicamentos na ambulância do Corpo de Bombeiros que o levou para o Hospital Antônio Pedro em estado gravíssimo. Sem plano de saúde. 

O autor e a obra: Nelson Motta com Tim Maia, em Nova York, julho de 1997
Sedado, entubado e respirando com a ajuda de aparelhos, Tim foi internado no CTI, onde permaneceu em coma induzido. Na sexta-feira, o quadro se agravou com uma hemorragia digestiva, seguida de uma infecção pulmonar e outra renal, que se espalharam pelo seu organismo.

No domingo, 15 de março de 1998, às 13h03, o coração do gordinho mais simpático da Tijuca parou de bater."

MOTTA, Nelson: Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.